É muito rica e gratificante a experiência que se adquire no atendimento ao público. Outro dia atendi um casal, completando cinquenta anos de casamento. União duradoura
e produtiva, do qual resultaram quatro filhos, todos já casados e com três filhos cada.
O casal de união duradoura necessitava de orientações no âmbito patrimonial, pois a questão envolvia os filhos, infindável preocupação dos progenitores.
Ocorre que um dos filhos desejava adquirir um imóvel de propriedade dos pais, atualmente desocupado, gerando apenas despesas aos seus titulares. A intenção desse filho era comprar o imóvel para ali morar com sua família, eis que tinha os recursos financeiros necessários. Já para os pais a venda do imóvel representaria a possibilidade de dar curso à reforma de sua casa, o que pretendiam havia muito tempo. O que faltava era o recurso financeiro.
Mas restava uma grande dúvida aos pais: será que poderiam vender apenas para um, quando tinham quatro filhos?
Pois a operação nesse formato é plenamente possível, observados os requisitos da lei. Prevê o Artigo 496 do Código Civil: “É anulável a venda de ascendente a descendente, salvo se os outros descendentes e o cônjuge do alienante expressamente houverem consentido”.
Portanto, na situação pretendida pela família, poderiam os pais vender o imóvel a um dos filhos, desde que os demais filhos e seus cônjuges dessem anuência na venda, o que dependeria da concordância de todos os familiares com o negócio.
Caso contrário, se a venda fosse feita pelos pais ao filho sem a anuência dos demais filhos e cônjuges, corresponderia a um ato anulável. Muito embora a anuência, neste caso, pudesse ser dada posteriormente para a validação do ato, enquanto pendente este consentimento o ato poderia ser anulado por sentença, caso os demais filhos do casal discordassem da venda e tivessem interesse no seu desfazimento. Portanto, uma hipótese que não geraria segurança jurídica e que não deve ser adotada.
Outro aspecto que deve ser considerado é quanto à real onerosidade do negócio. Necessariamente, numa venda nesse formato, deve acontecer, pela transmissão do imóvel, o pagamento de preço pelo comprador aos vendedores (e que não seja um preço vil), sob pena de ficar configurada uma doação disfarçada a um descendente protegido, em detrimento e prejuízo dos demais descendentes. Para tanto, tais circunstâncias deverão ser averiguadas quando do assessoramento do negócio e encaminhamento da escritura no Tabelionato, excluindo-se qualquer hipótese de simulação, pois a realização do ato gera uma série de consequências fiscais que devem corresponder à verdade dos fatos.
Visto isso, resta noticiar que foi realizado o negócio pretendido por aqueles pais zelosos, com a lavratura da escritura pública de compra e venda deles para um dos filhos, com a anuência dos demais filhos e seus cônjuges. O preço do imóvel foi pago à vista pelo comprador, e os vendedores conseguiram aplicar o dinheiro e pagar parceladamente a reforma tão sonhada no seu imóvel de moradia. Todos saíram satisfeitos e a lei foi cumprida. Ah, e a casa nova, reformada, segundo me contaram, ficou um encanto.
Texto é de autoria de Dra. Simone Bonalume, Tabeliã Substituta do TABELIONATO FISCHER